sábado, 4 de abril de 2020

Chapter 2 O Que Te Trouxe Aqui

Chapter 2 O Que Te Trouxe Aqui

Moss, Noruega. 21 de Dezembro de 2020

-- Você não sabe o quanto é bom te ter aqui.
Ela riu meio tímida e respondeu em tom sarcástico.
-- Bom, dada às circunstâncias, seu último ato "desesperado" que depois se transformou em boa ação... Tomara que valha a pena.
Devolvi o olhar no mesmo tom. Eu não sabia nem o que falar, estava lá, sentado na poltrona onde meu pai sentava pra assistir o jogo. E ela, no sofá do lado direito, em frente à mesinha de centro com nossos chás intocados. O mesmo penteado da noite passada. Cabeleiros loiros, de mais perto quase brancos. Apesar do horário avançado, a sala era levemente iluminada pelas paredes de vidro no solsticio de inverno.
-- Bom, pra falar a verdade primeiro lhe devo desculpas. -- falei, rispidamente.
-- não aceito suas desculpas. -- disse ela olhando nos meus olhos -- a não ser que seja pelo ano passado, por ter sumido e ter aparecido somente agora.
-- sim, por isso também. E por ontem
-- não entendo. 
A espressão aliviou.
-- fiz papel de idiota.
Ela se ajeitou em seus joelhos e se aproximou de mim.
-- você pagou 400 entradas e as deu para 400 pessoas assistirem ao meu show. Foi muito gentil.
-- sim, mas antes, egoísta, as comprei impedindo 400 pessoas que gostam de você, assim como eu -- não assim como eu, eu gosto mais -- de te assistir. O lance de doar foi improviso.
Tentativa falha de validar meu ato "desesperado"
-- hum, você se martiriza demais.
-- okey, Sou realista, acredito que o fim não justifica os meios.
Ela pegou a xícara da mesinha, deu um gole. Minhas mãos soavam descansando nos joelhos, nós quais eu tinha que lutar comigo mesmo para parar de ficar mexendo. Ela vestia um moletom preto e uma calça cáqui, nos pés agora descalços um tênis branco com detalhes rosa.
-- bom, eu gostei. Silja também. Aliás, ela quem me convenceu estar aqui hoje.
Ato "desesperado" validado.
-- estou devendo uma a ela.
Silêncio
-- sua casa é muito bonita.
-- Obrigado. Herança dos gênios Amélia e David.
-- Eu era muito fã deles.
-- sério? -- finjo estar surpreso.
-- claro.
-- seu estilo de música não propõe isso. -- falei irônico. Sabia que o assunto iria ficar pesado. 
-- bobo, me inspirei muito neles. Espero que não tenha se ofendido por ter te chamado pra tocar a música da sua mãe naquela noite.
O peso do assunto que eu já prévia. Alívio cômico invalidado.
-- Não, não. Aliás, foi muito bom pra mim. Maravilhoso na verdade. Você não imagina o significado.
-- Sério? Nossa, hesitei muito, mas Magnus quis tomar a frente e te contatar.
-- É, o grande Magnus. Nunca o vi tão feliz e nervoso quanto naquela noite.
Outro silêncio. Ela olhava em direção a parede de vidro.
-- por que você sumiu?
-- longa história...


-- se tiver um pouco mais desse chá, sou toda ouvidos.

Ambos filhos de famílias pobres, trabalhadores de uma fábrica de papel, meus pais, Amélia e David se conheceram ocasionalmente na pequena cidade da noruega, Moss. A educação na época não era das melhores no ensino fundamental. A saída era as escolas públicas que ainda se mantinham razoáveis. Papai nasceu em Narvik, em 1971, aos seis anos de idade mudou-se com a família para a cidade. Iniciou os estudos de piano no mesmo ano e aos sete começou a cantar no coral regido pelo meu avô, Alexander. Estudou ainda violino e harpa e formou-se em composição e regência na Faculdade de Música do Instituto Musical de Oslo. Até recebeu o prêmio de Produção musical pela Associação dos Críticos de Arte e foi contemplado com uma bolsa de estudos do governo noruegues para aperfeiçoar-se na área. Foi diretor da Escola municipal de Música de Moss e esteve à frente do Coral Jovem do Estado como produtor e diretor artístico. Durante duas décadas foi um dos nomes mais importantes na música clássica norueguesa e influência para outros nomes que viriam depois de sua morte. Mas antes, Casou-se aos 22 anos com Amélia, minha mãe, que nunca trabalhou profissionalmente com a música até então.

Depois de pouco a pouco a amizade deles se fortaleceu. Crianças, não se desgrudavam, estudaram a vida inteira na mesma escola e isso facilitou a convivência das famílias. Todos olhavam com bons olhos para a amizade infantil e depois para o namoro adolescente, apesar das dificuldades financeiras de ambas as partes. E pensar que o casamento quase não aconteceu, dada a oportunidade que meu pai teve de estudar na capital. Enfim, ele aconteceu, mas minha mãe teve de abrir mão de sua família aos 21 e seguir com meu pai para Moss, onde se estabilizaram financeiramente e fizeram algum sucesso na música.

Após a faculdade e a pequena fama entre os grandes artistas, papai ganhou notoriedade na produção musical logo depois que lançou sua esposa na música. Partindo disso cresceu o desejo de produzir e minha mãe foi seu primeiro grande feito na música clássica. Logo os dois e sua pequena banda estavam viajando e fazendo participações na tv e em shows de artistas já consagrados, consagrando-se. Seu segundo grande projeto viria a ser eu, o filho único do casal nascido em um hiato da carreira. Os dois diziam que eu fui consebido nas férias ao Brasil. Meu pai ficou muito feliz, aos 25 anos, teve seu primeiro e único filho. No começo eu odiava ir às aulas de iniciação musical. E por isso dava muito trabalho aos dois. Enfim, como diziam os jornais; o filho único que no futuro veio a desenvolver grandes habilidades como as de seu pai, no piano e instrumentos harmônicos como arpa e violão, também em instrumentos melódicos, na maioria de sopro e em violino.

-- Nossa, essa história eu não conhecia. Eles, vocês eram geniais. -- Ela falava enquanto caminhávamos pela casa até pararmos no piano. Aurora tocava o porta retrato. O último aniversário de casamento -- e lindos juntos.

Na foto, minha mãe e meu pai sentados no sofá de casa. Cada um com uma taça de vinho branco, o favorito de mamãe. Tínhamos chegado de uma pequena reunião de família que trouxe alguns tios e primos meus à cidade. Eu brinquei com minha mãe sobre achar que ela estava mais elegante que nunca e fiz a foto.

Já estavamos no jardim sentados na grama com mais chá quando ela me perguntou:
-- como realmente tudo aconteceu? 
Eu não respondi de primeira. Meu olhar ficou perdido no horizonte cálido. Meu coração não acelerou como eu esperava. Talvez por já estar esperando a pergunta. 
-- Desculpe. -- disse ela pondo a xícara ao lado.
-- tudo bem.

Estava tudo combinado. Inverno, era aniversário de casamento deles, 25 anos. O itinerário já estava pronto e a viagem de véspera de natal tradicional aconteceria. Tudo idéia da minha mãe. Um final de semana só do casal em Tromso, o dia perfeito para testemunharem a Aurora boreal. Eu, iria inaugurar meu show na segunda, noite do dia 24, eles viriam de avião até Oslo e o restante do trajeto fariam de carro. Discuti bastante com meu pai para que eles pegasse um vôo direto, mas ele achou bobagem, achava que daria conta...

-- Se não quiser falar, por mim tudo bem. 
-- Não, quase nunca converso com ninguém sobre esse assunto. Nunca desabafei sobre a morte deles e acho que por conta disso que há dois anos quase tiro minha própria vida. E isso tem haver com você também.
-- co-comigo? 

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