sábado, 11 de abril de 2020

Capítulo 3: A Metáfora da Borboleta


Eu fui criado na música. E meus pais sempre foram os meus super-heróis em tudo. Tinha muito orgulho deles. Eles eram o ideal que eu gostaria de alcançar e sempre que eles me viram tocar eu senti que era o que mais amavam fazer. Lembro de infinitas noites frias nesta sala de estar, mamãe e papai sentados no mesmo sofá onde você sentou meia hora atrás, chocolate quente, lareira acesa e eu, sentado ao mesmo piano da sala, tocando Frédéric Chopin, Beethoven, Johan Sebastian... Eu sempre amei os clássicos, como meu pai. 

Sempre fui uma criança de poucas amizades e posso até estar sendo modesto, anti social cabia melhor. Lembrando agora posso te dizer que também fui muito mimado, perfeccionista, ou sei lá o que. Tudo tinha que estar do jeito que eu queria e, se não estivesse, eu rasgava a palta e começava do zero. Isso interferia muito na minha relação com minha mãe. Ela sempre dizia que eu era exatamente como meu pai. Teimoso como tal. Minha mãe era delicada, amorosa e muito bonita. Cresceu nas montanhas e na natureza e sempre foi sonhadora. Tinha o temperamento de uma borboleta. Era o que dizia meu pai. E sempre fez muito sentido porque as borboletas, como minha mãe são frágeis, e houve uma época no qual meu pai quase a deixou voar por não cuidar muito do seu jardim. Eu, me sentia como uma flor, que recebia as visitas dessa tal borboleta. E quando frustrado, ela sempre me dizia que uma hora eu também seria uma borboleta forte fora do meu casulo, voando com minhas próprias asas ao sabor do vento e que tinha que fazer isto sozinho. Não se interfere no nascimento de uma borboleta, isso pode matá-la, ou deixar sequelas como até mesmo a perda da capacidade de voar. Isso sempre martelou na minha mente. Meus pais não mediam esforço para que isso acontecesse. Sempre estudei nas melhores escolas desde o maternal. Juntaram um bom dinheiro numa conta para quando eu entrasse na faculdade, de música, como quis meu pai. E quando enfim terminou o tempo na carreira de minha mãe para cuidar de mim ela voltou aos palcos, mais maravilhosa do que nunca. Claro, eu era criança... Mas quando me vi por gente me encantei com minha própria mãe. 

-- Não acredito que ainda está aqui me ouvindo.
-- É claro que estou! Em qual lugar melhor eu estaria? -- disse Aurora, trombando brincalhona seu ombro no meu. -- E você ainda não disse o que sua história tem haver comigo.
-- Mais chá?
-- Se não se importa, estou com um pouco de fome.
Olhei o relógio e minha nossa! São quase Cinco da tarde. Quase não acreditei que se passaram duas horas desde que começamos a falar
-- Não acredito que já se passaram quase duas horas desde que começamos a conversar.
-- Espero não estar te entediando com todo essa história.
-- Acredite, está sendo a melhor história. Você é bom nisso, devia seguir na profissão, estou presa em você.
Olhei para o lado e ela me olhava com curiosidade. Havia nela um ar dependente, como de uma vítima vulnerável, uma presa que se entrega e aguarda ser atacada alí mesmo na grama do meu jardim. Uma borboleta que pousou na mão de um menino curioso que trás na outra mão um pote de vidro e está louco para captura-la. Retorno do devaneio. 
-- Bom, posso te oferecer um jantar?
-- Sério? Então além de artista pop você também é cozinheiro? 
-- tenho dotes que você nem imagina.
O menino agora vê a borboleta levantar vôo e deixa o pote de vidro cair da mão maravilhado com o bixo bailando na sua frente. Entramos para preparar o jantar.
-- Espero que goste de Salmão.
-- E por qual motivo eu não gostaria?
-- Bom, eu não sei, mas se fosse o caso eu estaria frito. Pois é a única comida que eu não queimo.

Eu costumo jantar tarde, agora que moro sozinho isso tem se infatizado mais ainda. Eu estava na bancada terminando de preparar o salmão para levar ao forno. Tinha batatas cozinhando em uma panela e verduras em outra. Aurora tinha ido para mais um tuor pela casa, quando sem mais nem menos ouço música vindo da sala e ela reaparece na cozinha com uma taça de vinho branco mas mãos, atravessa o cômodo e se recosta na pia de frente pra mim. Estava frio. Mas ela ficava realmente lindas qualquer jeito.
-- Dá pra imaginar o quanto sua mãe era maravilhosa.
-- Gostou? Ela compôs essa música sozinha. 
-- É uma das minhas preferidas. Delicado, acústico, o modo como as palavras sutis me levam ao pensamento de identificação. Dramática no ponto certo.
-- Meu pai e eu tinhamos chegado à noite de um passeio com a Laika e ela estava na escrivaninha. O violino em cima do piano e até a bateria do meu pai havia sido vítima dela acredita? Parecia inquieta e animada. Quando ela começava a gente já sabia, não iria ter jantar. -- Rimos -- depois ela entregou uma série de patas para meu pai e ele produziu aqui mesmo.
-- Nossa, estou no berço das obras de arte da família Haugen. Falando em jantar, qual o prato de hoje chefe?
-- Salmão no forno com creme seterrome, molho hollandeise, aspargos com cebola tomate cereja azeite sal e pimenta colorida e pra finalizar batata cozida.
Aurora respondeu cada ingrediente que eu ditei com um "huumm" animado.
-- Prato de um típico norueguês do norte.

Estávamos sentados na mesa de jantar da cozinha, o lugar preferido da minha mãe na casa. Era para seis lugares, Aurora sentava na ponta e eu do seu lado. Apenas dois pratos e decoração. Já havíamos esvaziado uma garrafa de vinho e estávamos na segunda.
-- Eu nunca soube lidar com perdas. Minha mãe sim. Ela era a pedra forte da família. No dia em que nossa cachorra faleceu eu fiquei na cama por três dias. Eu tinha visto ela crescer e ela a mim. Tinhamos mais ou menos a mesma idade quando aconteceu. "Neoplasia, provinda de uma infeção viral" disse minha mãe quando chegou do veterinário. Era tarde demais para evitar a metástase e só tínhamos algumas semanas com nossa companheira. Mais vinho?
-- Por favor. 
-- foi ela quem optou pela eutanásia. Ela quem nos preparou, ela quem suportou vê-la ir embora, enquanto meu pai ficou do lado de fora e eu na casa de meus avós. Ela era intransponível para algumas coisas. Nunca a vi chorar. Sinto falta de como ela me fazia sentir melhor, como completava meu vazio, como sempre tinha a palavras certas para a serem ditas a cada momento. Enquanto meu pai, sempre mais durão, escondia seus sentimentos, minha mãe chorava comigo, éramos conectados por essa empatia.
-- Amor. -- disse Aurora olhando para a taça de vinho. -- o nome disso é Amor. Como essa garrafa e essa taça. Pessoas que amam não se importam em se esvaziar para ver o outro completo. 
Disse ela pondo as últimas gostas de vinho da garrafa para sua taça.
-- Mas chega uma hora em que os dois estarão vazios. -- falei, aproximando minha taça vazia da garrafa, também vazia.
-- Pelo contrário, o amor se regenera, ele é infinito. Sentir-se vazio às vezes não é sempre falta de amor. Carência, tristeza, solidão. Todas essas coisas podem nos fazer sentir vazios. No caso de quem ama, doar-se ao próximo não te esvazia.
-- só que nós, minha cara, já esvaziamos duas garrafas de vinho e estamos falando demais.
-- Bobo, só estou tentando dizer que amor não é aquilo que se constrói com uma pessoa, mas algo que se cultiva para doar. O amor próprio. Uma pessoa que se ama também saberá amar a outras pessoas. É por isso que hoje em dia se sofre por amor. As pessoas nem ao menos se amam se entregam a outras buscando completar seus vazios... Suas carências, suas tristezas. Deve ser por isso que algumas caem na bebedeira, talvez tentando enxer os vazios com cachaça, vinho branco -- fez sinal para a nossa garrafa -- Eu acho que sua mãe, com suas palavras certas, tentava lhe ensinar a como amar a si, a ser forte, a cultivar seu amor.
Fiquei alguns segundos refletindo aquelas palavras e me dei conta do quão genial elas eram, e o quão egoísta fui naquela carta. Eram 7 da noite quando ela, piedosamente falou:
-- Bom, devo ir. 
-- tão cedo?
-- bom, tenho alguns km's até Oslo, e já tá ficando tarde meu caro.
-- tudo bem, mas não acha perigoso sair a essa hora? 
-- O que você sugere? Que eu durma aqui? -- tirou as palavras da minha cabeça -- São apenas 60 km, em menos de uma hora estou em casa.
Adoro seu senso de humor.
-- peço perdão pelo imprevisto. Não sou muito de falar, mas se começo...
-- tudo bem, eu adoro dirigir e tenho feito muito isso depois que me mudei de Bergen.
Caminhávamos para a porta, eu estava ansioso e nervoso. Ela havia me dado vários sinais de correspondência. Tinha sido Gentil em me ouvir e no final me disse coisas cativantes. Será que deveria dar alguma investida? Ou isso seria um exagero? Pera um pouco, ela já está perto da porta! Ah meu Deus e agora?
-- ah.. Espero poder vê-la novamente, por aí quem sabe.
-- eu adoraria. 
-- adoreu sua companhia, a conversa foi ótima.
-- O jantar que foi. Você sabe realmente como entreter suas visitas.
-- sorte minha, porque há muito tempo .não recebo uma.
-- Como uma pessoa não visitaria alguém que faz um salmão tão gostoso, te fala de borboletas e te oferece o melhor vinho que já bebi?
Falou enquanto colocava os sapatos.
-- talvez não hajam pessoas tão com paladar tão rebuscado como o seu, ou não tenham a sensibilidade e delicadaeza de uma borboleta, ou prefiram uma cerveja barata. 
Rimos.
-- não se preocupe, se você mantiver flores, as borboletas sempre voltam. Quem sabe alguma até fique. E você tá me defendo o fim desta história, o mesmo a parte onde eu salvo sua vida.
Nesse momento tive quase certeza de que isso foi uma cantada. Antes que eu pudesse beijá-la ela se virou e abriu a porta e caminhamos até seu carro na minha entrada. Bem, não era realmente a hora. Quem sabe outro dia, em um passeio, onde eu poderia ouvir mais sobre ela, levar flores, sei lá. Eu nem tenho o telefone dela... Devo pedir? Que coisa! Ela sabe onde eu moro. Estou em desvantagem aqui e ela já entrou no carro! O motor berrou, o carro deu ré e eu vi dobrar a esquina a pessoa por quem talvez eu esteja apaixonado. Enfim, não tenho mais chance de mudar essa noite, entrei em casa e pensei em arrumar os vestígios de nossa conversa. Para o fim dos meus pensamentos como o soar do fá mais grave de um piano de 88 teclas, o céu começou a trovejar e posteriormente a chuva veio infalível. Eu já estava começando a lavar a louça quando ouvi a campainha. Saí para atender e Aurora estava ali, ensopada dos pés a cabeça.

Nenhum comentário:

Postar um comentário